2004-07-25
A Lucidez da Loucura
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Beijava-lhe a nuca sofregamente, como um amante sem alma. Subitamente, disse:
- “Tu és um anjo”...
Ela sorriu. Olhou os frisos da janela fechada. Era Inverno e o calor protelado para sempre, causava-lhe saudade. Talvez não viesse mais.
Respondeu:
- “Mudar não é fácil. Exige muita coragem. Coragem contém genialidade, poder e magia”.
- “Quem me dera ser assim”, retorquiu ele. “Tens uma resposta, sempre, e encaras a vida com uma serenidade... “
- “Quem disse?...”, perguntou ela.
Os seus olhos encararam novamente a janela. A boca dele tinha descido para o ventre. Chovia, já há muito tempo, e não parara mais. Ele tinha ficado com os lábios pousados sobre o umbigo, as pernas procuravam as dela, numa pulsação cansada. Esperava uma resposta, desejava saber se ela era um anjo. Queria saber se sofria. Se tinha as mesmas angústias e alegrias que ele. Se ruborizava e empalidecia.
Sussurrou-lhe:
- “Meu querido, essa serenidade acontece até ao dia em que alguém nos aparece... e damos connosco perdidos numa loucura que não tem nome nem se identifica por actos, palavras ou omissões. É, porém, amor e, como tal, escorrega entre qualquer definição poética ou científica que lhe queiramos imputar”.
- “Tu afinal... choras!” , disse ele, sorrindo.
Ela continuou, baixinho:
- “Descobrimos, então, que dentro desta loucura há uma estranha lucidez, que nos faz tremer por dentro e nos acorda a sugerir que a vida que se segue possui uma alegria algo inédita. Nesta estranha loucura há um fio condutor que se antecipa a todos os momentos e nos sussurra: "estou aqui"!… “estou aqui!”... E é quando - nesta lucidez da loucura - sentimos o coração descongelar… e encontramos o meio de concretizar todas as coisas. Agora, beija-me”.
Ele beijou-a nas coxas, como um amante sem corpo.
- “Como fazes isso?”, perguntou ele. “Como arranjas forma de concretizar todas as coisas?”
- “Descobri que todos os impossíveis estão muito lúcidos, e que a loucura é a mais sensata forma de viver. Mas terás de descobrir isso por ti. Já te disse: coragem contem genialidade, poder e magia”.
Ele sorriu e acariciou-lhe as pernas com a ponta da língua.
- “Dizes umas coisas tão estranhas.... É por seres um anjo? Um anjo que chora?”
- “Não”, respondeu ela. “É por ser um anjo sem asas”.
Depois disso, ficaram em silêncio e a boca dele, perdeu-se.